O dia a dia de um A.A. e deu seu grupo-base desde o lockdown de 2020 até os dias atuais.
Em março de 2020, o governo de São Paulo decretou quarentena em razão da Covid-19. No dia 20 daquele mês, ao encerrarmos nossa reunião antes do fechamento temporário do grupo, o futuro era incerto, parecia haver uma sombra a pairar sobre o mundo. Na mídia, cada dia raiava com taxas galopantes de internações e óbitos – qualquer um poderia engrossar as estatísticas no momento seguinte.
Meu primeiro impulso, antes de aceitar a situação, foi de rebelião contra as determinações do governo, da paróquia onde alugávamos nosso espaço e dos veteranos de nosso grupo: suspender as reuniões por tempo indeterminado. Meu medo de recair era maior que o de contrair Covid e morrer. Sugeri, num arroubo de insubordinação, que alugássemos uma sala para reuniões clandestinas!
Não me tinha caído a ficha de que a maioria no grupo assimilara e aceitara a importância da quarentena. Em junho, quase sorrateiramente, voltei ao grupo. Ao abrir a porta, vi o chão com folhas de árvore, teias de aranha e poeira pelos cantos. Na lousa ainda estava a reflexão de 20 de março, “Amor e tolerância”, e o princípio de ouro “É preciso meditar”.
Fiz isso, indo três vezes por semana à sala, varrendo, escrevendo na lousa, lendo o roteiro e conversando mentalmente com meus fantasmas naquela hora e meia de “reunião”, acompanhado do Livro Azul, do Vivendo Sóbrio e do Na Opinião do Bill. Acreditava ser uma forma de manter minha sobriedade e serenidade, já que o mundo estava de ponta cabeça – e o grupo ficava no meio do caminho entre minha casa e meu trabalho. Andava com um alvará da empresa que me permitia transitar em lockdown por ser prestador de serviço essencial.
Usei o recurso de ligar para meus padrinhos, mesmo sendo avesso a telefonemas e a Whatsapp. Confesso também que, quando começamos com reuniões online, graças a nosso tesoureiro, quis bancar o birrento, mas me ajustei a tempo.
Eu chegava uns dez minutos antes, fazia o café, varria a sala, escrevia na lousa a data, a reflexão diária e o princípio de ouro. Pegava o celular, mandava fotos da sala para o grupo do Whatsapp, entrava online na reunião. Às vezes meu pacote de internet expirava e eu ficava sem as partilhas, que têm o poder de me conectar comigo, com meu semelhante e com um Poder Superior que fala comigo através do grupo, não importa se virtual ou presencial, fala por meio de meus irmãos em A.A.
O tesoureiro contratou então um provedor de Internet para o grupo, trouxe notebook, microfone e uma caixa amplificadora. Agora não dependia mais do meu celular. O padre da paróquia demonstrou solidariedade, entendendo que o grupo era um serviço essencial para alcoólicos que não dispunham de celular, internet ou traquejo digital.
O grupo se desdobrou após iniciar reuniões virtuais. Alguns não conseguiram adaptar-se e ficaram sem reunião; muitos recaíram. Mais grupos foram retomando reuniões presenciais, então, “necessitados” como eu começaram a aparecer. Estávamos buscando a recuperação ou nos colocando em risco? Havia recém ingressados. Eu pensava na responsabilidade de passar a mensagem de A.A. aos novos e pedia ajuda. Inserimos reuniões híbridas na rotina do grupo. Na telinha, tínhamos alguns veteranos e também companheiras que se revezavam na coordenação de reuniões virtuais.
Que reuniões incríveis! Às vezes eu participava da primeira hora de reunião na sala virtual e da segunda hora na sala presencial. Um privilégio! Transitava pelos dois ambientes. Embora surgissem focos de controvérsia – Não gosto de reunião online; Vários na sala presencial estão sem máscara!; O grupo agora é dois? -, a unidade foi mantida, a contribuição aos órgãos de serviço e o aluguel da sala continuaram sendo pagos, a reposição dos livros sendo feita.
Com o controle da pandemia pela vacinação, mais companheiros retornaram. Hoje o grupo tem frequência média de 12 pessoas. A participação de companheiras aumentando, também o ingresso de jovens. As reuniões online continuam, tornaram-se ferramenta imprescindível.
Embora alguns temessem pela saúde do grupo com tantas circunstâncias inusitadas, incluindo a polarização política, seguimos em frente. Alcoólicos ingressam na reunião presencial e na online. Os que ficam têm oportunidade de ver um Poder Superior, na forma em que O concebem, agindo em suas vidas. Os que não ficam dão, possivelmente, o triste passo uma tragédia anunciada. Os que fazem em recuperação a passagem desta vida deixam a mensagem de A.A. ecoando em nossas mentes e corações. Funciona!
Autor: Paulo, Área 32 SPL.
Fonte: Revista Vivência, edição 209, páginas 28, 29 e 30.
